Uma mudança contínua

No dia 3 de julho de 1968 foi instituída a primeira lei de cotas no Brasil. A Lei nº 5.465/68, mais conhecida como Lei do Boi, assegurava 50% das vagas nos estabelecimentos de ensino médio agrícola e nas faculdades de agronomia e veterinária mantidas pela União para “atender às demandas de formação específica” de alguns segmentos sociais. Em outras palavras, quem efetivamente foi beneficiado por aquela Lei foram os filhos dos donos de fazendas. A Lei do Boi só foi revogada em 1985, portanto, 17 anos após a sua criação. “Mas não se fala sobre isso. Dizem que é errado criar cotas raciais porque não tem racismo no Brasil. Bem, esse argumento não é válido. As cotas de mulheres nos partidos políticos também são anteriores às cotas raciais e não causam os mesmos conflitos”, afirma a professora Vânia Penha-Lopes, Ph.D e titular de Sociologia do Bloomfield College, em Nova Jérsei, nos Estados Unidos. Codiretora do Seminário do Brasil na Universidade de Columbia e autora de “Pioneiros: Cotistas na Universidade Brasileira”, ela concedeu uma entrevista sobre as afinidades e diferenças no que diz respeito à abordagem da questão racial no Brasil e nos Estados Unidos ao programa Rio em Foco, da TV Alerj, que vai ao ar nesta segunda-feira, às 22h, na TV Alerj (Canal 12 da Net).

“A grande diferença é que nos Estados Unidos sua raça é determinada, traduzindo livremente, se você tiver uma única gota de sangue negro. E além disso, os americanos foram guiados por uma lei segregacionista que perdurou de 1896 até 1954”, diz Vânia referindo-se à decisão da Suprema Corte norte-americana que decidiu sobre a constitucionalidade do direito dos estados da União de impor a segregação racial em locais públicos sob a doutrina do "separate but equal" (separado mas igual).  Este parecer prevaleceu até 1954 quando a Suprema Corte reverteu aquela decisão no episódio que ficou famoso como o Caso Brown. Os pais de Linda Brown, uma menina de sete anos do Kansas, não entendiam por que sua filha precisava viajar diariamente até uma escola afastada para negros se dispunham de um centro público renomado em seu mesmo bairro. Era exclusivo para brancos.  Tribunais menores ignoraram várias queixas semelhantes no sul racista, mas o caso dos Brown chegou ao Supremo e a máxima instância lhes deu razão: haver escolas só para brancos e outras só para negros era inconstitucional.

“Mas dez anos depois a situação não havia mudado o suficiente. Porque a lei tinha a ver com as escolas e elas já eram segregadas, ou seja, as crianças tinham grandes dificuldades de acesso e os professores negros ganhavam menos que os brancos”, lembra Vânia. Somente 10 anos depois, em 1964, o presidente Lyndon Johnson, assinou o decreto que criou a Lei dos Direitos Civis, proibindo a discriminação racial nos EUA. A lei havia sido proposta um ano antes pelo então presidente John Kennedy em um pronunciamento no qual ele pedia que fosse criada uma legislação capaz de "dar a todos os americanos o direito de serem servidos em todas as instalações abertas ao público _ como hotéis, restaurantes, teatros, lojas e estabelecimentos similares”.

Enquanto isso no Brasil se buscava construir o mito da Democracia Racial. As pessoas orgulhavam-se em dizer que, por aqui, não havia racismo. Tudo se resumiria apenas a uma questão menor de discriminação de classes sociais, ou seja, de renda. Uma vez que um negro enriquecesse, não haveria mais nenhuma questão. “Essa ideia era tão forte que muitos negros americanos sonhavam em vir para o Brasil onde, imaginavam, não haveria racismo”, diz Vânia. “E essa história de renda não é verdade, o que muda é a faceta do racismo. Uma pessoa negra num restaurante caro ainda é uma avis rara. Todo mundo olha”.

Em seu estudo sobre os primeiros alunos cotistas da UERJ, Vânia ressalta a dificuldade e o esforço empenhado por aqueles estudantes até conseguirem se formar. Segundo ela, as primeiras críticas às cotas diziam que elas só iriam alcançar negros de classe média ou egressos de instituições públicas renomadas. “Só que minha mostra apontou que a maioria dos entrevistados vinha de áreas menos favorecidas. Muitos eram moradores de comunidades. Lembro de uma menina me contando que não tinha ônibus e precisava caminhar longamente até conseguir pegar o trem. E como o dinheiro que tinha era pouco, não dava para comer todo dia”, diz ela. Dos primeiros entrevistados ela diz manter contato até hoje com quatro estudantes, todos eles foram até o doutorado e são hoje professores universitários.

Vânia diz que apesar de não existirem cotas raciais nas escolas e universidades norte-americanas, as ações afirmativas que começaram em 1964 foram fundamentais para mudar o pensamento do país.  “Ação afirmativa é uma política que assume várias formas. A cota é só uma delas. Antes do ato civil de 1964 se um negro se candidatasse a um emprego nos Estados Unidos o empregador nem olhava o currículo”, diz. Ela lembra que é preciso compreender certas diferenças culturais entre os dois países: “Nos Estados Unidos você dizer ‘vamos dar atenção a esse grupo que foi discriminado historicamente’ não é o mesmo que dizer ‘vamos reservar 20% das vagas para pessoas deste grupo.”

A partir de terça-feira, a entrevista estará disponível no canal do Fórum de Desenvolvimento do Rio no YouTube. Na TV Alerj, as reprises serão exibidas no sábado, às 17h, e domingo, às 20h.