Vida social é tão importante quanto a escola na formação de leitores

A escola, a família e a vida social são os principais elementos que contribuem para a formação de leitores. Quem diz é a professora da UERJ Márcia Cabral da Silva, autora da pesquisa "Uma história da formação do leitor no Brasil", que fala sobre a importância do projeto gráfico dos livros e o que o poder público pode fazer para estimular esse processo.

A escola e a família são elementos cruciais na formação de leitores, mas a vida social - representada pela participação em agremiações culturais, clubes de leitura etc. - é igualmente importante e frequentemente negligenciada. Cabe ao Poder Público ativar esses espaços para estimular a leitura entre os jovens. Quem afirma isso é a coordenadora do curso de Pedagogia Presencial da Uerj, a professora Márcia Cabral da Silva. Ela é autora da pesquisa "Uma história da formação do leitor no Brasil", que usa as memórias de Graciliano Ramos para analisar como acontece a formação de leitores. Nesta entrevista, a professora fala sobre os elementos que contribuem para esse processo e a importância do acabamento dos livros como forma de estimular a leitura.

Como surgiu a idéia do livro?

O livro é resultado de uma pesquisa de doutorado, desenvolvida no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL/Unicamp). Sou graduada em Letras e fiz mestrado em Educação. Meu interesse sobre a formação de leitores e práticas de leitura surgiu no período em que trabalhei na rede municipal de ensino e no mestrado, e examinei uma coleção de livros para crianças na fase de alfabetização. Naquela época, estava pensando na formação do leitor na esfera da produção do material. Na tese de doutorado, quis descobrir como um escritor reconhecido, no caso o Graciliano Ramos, se tornou um leitor. Em várias biografias dele, percebemos vários indícios de que ele foi analfabeto até os nove anos: Graciliano percorreu várias escolas sem aprender a ler e escrever. Li toda a obra dele e percebi que o livro Infância tinha um material importante, que contrapus com fontes documentais. Durante a pesquisa, percebi que a mediação - representada pela escola, pela família e pela vida social - é um elemento importante na formação do leitor.

Quais são os fatores que constroem um leitor?

São vários os elementos de letramento. O senso comum pensa que só nos centros urbanos se tinha acesso à leitura, mas não. Há dados curiosos, porque, apesar de a região onde Graciliano cresceu ter índices de analfabetismo muito altos (de 80% a 90%), havia pessoas que liam. No primeiro momento, destaco o acesso a materiais de leitura, que era muitas vezes marcada pela oralidade. Além das histórias contadas pelos empregados, que contavam histórias de assombração, Graciliano tinha pai e mãe leitores, ela especificamente de folhetos religiosos. À época, é interessante notar que o modo de leitura era em voz alta, o que é muito diferente dos modos contemporâneos.

Você cita que na época de Graciliano eram usados métodos rudimentares. Isto mudou?

O que Graciliano relata são métodos bastante conservadores, que tem a ver com a concepção de ensino da época, quando circulava a palmatória e os professores eram mal preparados. Há casos de a professora ser substituída por sua filha, que não tinha nenhum preparo. Havia ainda as pessoas que faziam do magistério um bico, como advogados aposentados. O sistema era muito precário. Nesse contexto, uma coisa me despertou atenção: como alguém educado nesses moldes se torna um grande escritor da história literária? A resposta é que a vida social era muito rica. Graciliano relata a existência de uma agremiação literária, em que os jovens se reuniam para discutir e produzir literatura. Eles escreviam poesia. Nesse sentido, em um cenário em que a escola era pouco capaz e família severa, a vida social passa a ser o ambiente onde Graciliano produzia literatura.

A que conclusões a senhora chegou a partir destas observações?

Eu concluo que a mediação precisa ser pensada na escola, já que hoje ela é muito mais rica que em 1906, e na família, que hoje tem maior nível de escolaridade - mas a vida social não pode ser negligenciada. Para estimulá-la, precisamos de bibliotecas públicas e agremiações culturais, por exemplo.

Sobre a questão de apresentar clássicos como Machado de Assis, considerado difícil para adolescentes, qual a sua opinião?

Acho que a escola não é um espaço fortuito, então as práticas precisam ser planejadas e orientadas. Leituras dessa natureza são preciosas. Machado de Assis é considerado difícil, mas ele só o é se não for contextualizado. Minha sugestão é que os professores se preparem para apresentar esses materiais de leitura [aos seus alunos], sempre respeitando os clássicos. O acesso a esse tipo de leitura tem que ser feito de forma mediada e contextualizada: quem foi esse autor? Qual o conjunto da obra dele? Uma boa opção é exibir filmes da época, usar depoimentos de pessoas que viveram na época da publicação do livro etc. Há uma infinidade de recursos para que o leitor possa ter uma iniciação nesse tipo de leitura.

O jovem hoje lê?

Eu tenho um grupo de pesquisa que se chama "Infância, juventude, leitura, escrita e educação". Entre 2007 e 2009, nós visitamos tanto o ensino público como o privado para saber o que esses jovens lêem. A nossa conclusão? Eles lêem sim, mas tem interesse em outros materiais, muitas vezes veiculados em outras mídias, inclusive no cinema, caso de Crepúsculo e Lua Nova. Eles ficam entusiasmados quando vêem que aquilo está no livro. Hoje as mídias estão muito misturadas e elas podem cumprir de certa forma o papel da vida social. Além disso, temos ainda o leitor de mangá, os quadrinhos japoneses, que é um caso interessante.

Qual a importância do acabamento do livro?

Muito importante. Não é de hoje que os editores têm investido nessa questão. Monteiro Lobato, quando foi editor, revolucionou o aspecto gráfico dos livros infantis, segundo pesquisadores. Um livro mal acabado não favorece a intimidade [com a leitura].

Como é que fica essa questão com as novas tecnologias?

Acho que pode colaborar, mas acho que um tipo de leitura não substitui a outra. A leitura online é rizomática, não-linear, e acaba nos levando para outros espaços e termina por favorecer outras habilidades, que também são importantes. Ela não vai acabar com o livro. É preciso que essas duas modalidades convivam.

O que o poder público pode fazer para apoiar a formação de novos leitores?

Embora a escola tenha um papel fundamental, os espaços públicos precisam ser melhor ativados. No Rio de Janeiro, temos um problema sério com as bibliotecas públicas, que precisam ser revigoradas. Há casos em que os livros novos chegam à biblioteca, mas não são colocados de forma a chamar atenção. Além disso, muitas vezes a biblioteca pública é uma repetição da biblioteca escolar. Uma boa opção é fazer o que faz a Biblioteca Nacional, que oferece cursos gratuitos. O perfil do público que os frequenta é muito interessante: vai de aposentados a estudantes de ensino médio. Essa é uma forma de ampliar o trabalho realizado pelas escolas.