OsteRio: Depois do choque de ordem, o quê?

Quarto encontro da série promove debate sobre a política da nova gestão municipal. O resgate da autoridade é apontado como um dos méritos da iniciativa, mas participantes são unânimes em afirmar que, para ser sustentável, só ele não basta

Rosa Lima 

Um debate acalorado marcou a quinta rodada do OsteRio na noite do dia 1º de junho. Com o segundo andar da Osteria dell´Angolo repleto de gente, o choque de ordem implantado pela administração do prefeito Eduardo Paes foi o tema posto em discussão. A degradação do Rio de Janeiro e a necessidade de se restabelecer a autoridade pública foram pontos pacíficos entre os presentes. Mas dúvidas sobre o que virá além da política de choque atual semearam discórdia e provocaram um debate entusiamado na plateia. O principal recado deixado pelo encontro foi: precisamos de um novo arcabouço institucional, com incentivos corretos e regras claras que possam ser seguidas a longo prazo. Só isso garantirá a reestruturação mais profunda da cidade, capaz de colocá-la novamente no rumo do desenvolvimento.

Como de praxe, quem abriu a sessão foi o mediador André Urani, economista do Iets. Ele apresentou o secretário especial de Ordem Pública, Rodrigo Bethlem, como o xerife da cidade – “não sou eu quem diz isso, mas a própria mídia que o trata assim”, disse André, para em seguida justificar o convite ao economista José Márcio Camargo, da PUC-Rio, para compor a mesa: “Como é difícil encontrar alguém que seja contra o choque de ordem, resolvemos convidar o Zé Márcio, que é sempre certeza de polêmica”.

Rodrigo Bethlem trouxe uma apresentação com um balanço das operações realizadas de janeiro a maio e sua repercussão na imprensa. Começou por explicar que a idéia do choque de ordem não é ser transitório, mas intenso e permanente. “Foi por isso que o prefeito criou a Secretaria Especial de Ordem Pública, para integrar as ações, que espalhadas por diferentes órgãos, acabavam tendo pouca efetividade”.

Segundo Rodrigo, a desordem urbana traz consigo um elemento desagregador que propicia a prática de pequenos delitos e levam à sensação de insegurança pública. O lixo urbano e as irregularidades no trânsito, a mendicância e a prostituição, a camelotagem, a pirataria e a publicidade irregular compõem um ambiente onde tudo pode.

“Como uma coisa leva a outra, essas situações banem as pessoas e os bons princípios das ruas, contribuindo para a degeneração e desocupação desses logradouros e a redução das atividades econômicas”, disse ele, explicando que a política atual se baseia na teoria da “janela quebrada”, adotada em Nova Iorque, e que aqui ficou conhecida como “tolerância zero”.

Em seguida, o secretário fez um relato das operações em curso, desde a apreensão de CDs e DVDs piratas – “hoje a pirataria é mais rentável que o tráfico de drogas”, passando pelo combate à propaganda irregular – “90% das engenhocas publicitárias na cidade não pagam nada ao poder público”, até o difícil enfrentamento do problema da população de rua -“a entrada do crack no ano passado trouxe para a cidade um dos maiores desafios que precisamos enfrentar”.

Bethlem falou ainda da repressão aos veículos nas calçadas e em fila dupla, do combate aos táxis e vans piratas, da derrubada de construções ilegais e da mudança de estratégia com os ambulantes irregulares, quando se passou a atacar os depósitos clandestinos em vez do combate a camelôs isolados. Falou também da extensão do horário de trabalho da Guarda Municipal das 18h para as 21h, que reduziu em 12,5% os delitos no Centro, Tijuca, Copacabana, e informou que a meta é passar dos atuais 5.200 homens para um efetivo de 11 mil guardas até o fim do mandato. Tudo isso, segundo ele, com o propósito básico de restaurar o princípio da autoridade e “fazer o Rio sair dessa espiral negativa em que entrou”.

Incentivos corretos

Na fala que se seguiu à apresentação de Rodrigo Bethlem, o economista José Márcio Camargo começou afirmando que o Rio de Janeiro tem como principal riqueza sua beleza, que é um bem público, por conseguinte muito difícil de se regular. “A principal riqueza do Rio não é o petróleo ou a indústria, mas sua beleza, que não pode ser privatizada. Você não pode cobrar para as pessoas olharem o Pão de Açúcar ou o Corcovado”, disse.

Para ele, ao contrário das demais cidades brasileiras, o Rio sofre de falta de estado, que, agravada pela culpa pela pobreza e pela desigualdade, leva a uma permissividade extrema no ambiente urbano. “Aqui, todo mundo pode tudo. Precisamos mudar os incentivos para mudar a dinâmica da cidade”, disse, acrescentando que vê o choque de ordem como parte desses incentivos corretos que precisam ser adotados. “Criar uma institucionalidade que ponha esta cidade na direção da ordem é fundamental”, avaliou, ressalvando: “o Estado sozinho não consegue fazer isso”.

Aberto o debate, a socióloga Julita Lemgruber se disse preocupada com o fato de a prefeitura apresentar a estratégia de choque como panaceia para os problemas da segurança pública do Rio. “É preciso ter cuidado com o que vocês estão vendendo para a população. O que reduziu a criminalidade em Nova Iorque não foi a política de tolerância zero, mas o choque de gestão na polícia, a reforma tributária e a queda do crack”.

Com ela concordou a antropóloga Alba Zaluar que acrescentou que em Nova Iorque a polícia passou a se relacionar de outra forma com as vizinhanças, ao passo que no Rio, que sempre primou por uma história de associativismo forte, o poder público esvaziou o diálogo com as comunidades.

As falas seguintes – do vereador Paulo Pinheiro, passando pelos economistas Maurício Blanco (Iets), Joana Monteiro (PUC), Toni Piccolo (Amai-vos), os donos da Osteria, Luciano e Alessandro, até a vereadora Aspásia Camargo – foram todas elogiosas à ideia de se frear a desordem urbana generalizada, mas se mostraram reticentes quanto ao alcance da política de choque adotada pela prefeitura.

“Há questões pontuais até interessantes, mas é uma política hipertrofiada, apresentada como solução definitiva para a cidade”, disse Paulo Pinheiro. “Me preocupam ações de curto prazo. Como fazemos para criar instituições que nos permitam enxergar no longo prazo e ter sustentabilidade?”, questionou Maurício.

“Entendo o choque de ordem como o início de um processo que precisa ser aprofundado”, disse Joana. Já Toni Piccolo ponderou que ninguém mora em favela por que quer. “Mudar o espaço urbano passa pela adoção de uma política de habitação séria”, afirmou. Luciano Pessina disse que a degradação do Rio é consequência do abandono do poder público e provocou: “Precisamos mesmo é de um choque de ordem na classe política”.

Por sua vez, a vereadora Aspásia, que preside na Câmara a CPI da Desordem Urbana, defendeu a urgente adoção de um código de posturas para impedir a completa desintegração da cidade. “O que está em jogo é o tipo de urbanização que queremos para o Rio de Janeiro”, disse.

Por fim, a preocupação com o que virá depois do choque de ordem foi bem resumida pelo diretor da Firjan José Arnaldo Rossi, um dos mentores do OsteRio: “A ordem é tradicionalmente a representação dos interesses dominantes. Só faz sentido se ela incluir também os dominados. O choque de ordem para mim é a retomada da cidade fazendo política. Só força bruta não resolve. Ou se legitima ou não vai dar certo”.